Entrando pela perna de pinto, saindo pela perna de pato, o que me traz de volta ao “abrigo blogal” — esse serviço de proteção ao ego conectado — são evocações de infância. Justo na hora em que a gente precisa mais, elas chegam — prestativas, fiéis, suprindo carências e recompondo a alma.
Foi quando subia a Serra das Russas, ouvindo Luiz Gonzaga e comendo o milho assado de Bonança. Lembrei da minha tia Almira, em Patos, Paraíba, do “Major Migué”. Ela replicava de tal forma o ritual biblíco da repartição do pão, ao cortar em pequeníssimas rodelas o milho assado para os sobrinhos, que a santa partilha virou patrimônio imaterial na memória familiar “dos Lúcios”. Um dia ainda peço o tombamento ao IPHAN…
A lembrança do ritual veio outro dia através de Jr., o meu irmão que guarda consigo o nome do nosso pai Edmilson, no exato momento da fogueira junina em que repartíamos o milho de Gravatá. E me traz a estas reflexões que, blogadas, podem também ser úteis aos leitores amigos. Dois dedos de prosa, então.
Primeira coisa: vou falar de lugares — o tempo-espaço construído por pessoas. Pois não é isso que são os lugares? Gravatá, aos meus olhos e sentimentos ainda precários, está se tornando um lugar de recomposição do espaço-emoção das famílias, especialmente as metropolitanas do Recife, esgarçadas pela violência e pelo dia-a-dia estressante da cidade grande. Esse sentimento de recém-chegado à minúscula casinha térreo-e-primeiro (com um providencial terraço em palafita de madeira que fizemos e empresta a ela um ar de “bangalô” metido a besta) foi outro dia complementado por uma observaçào do meu amigo Ricardo de Almeida. Eu dizia que estava comprando “um vento e um friozinho” em Gravatá. Ele me disse: não, você está comprando “convivência”. Pois não é que ele tem razão?
Convivência em especial com a família, com as memórias, com os amigos que a gente vai descobrindo que também vão chegando ou passando. Outro dia, por exemplo, estava tomando a decisão de que livros vão pro estúdio de lá, desocupando a minha congestionada estante olindense. O estúdio de primeiro andar tem janela para o vento sudeste, o melhor de Gravatá. É dela que vejo a Serra do Maroto, que já virou mito entre os vizinhos do meu bairro (dizem que até Fátima Bernardes e William Bonner têm casa lá…não sei não, mas Zé Paulim tem…). Pois bem: dividi as prateleiras por décadas (vixe…) e só o ato de arrumá-las é uma viagem de desconstrução e recomposição de pensamentos e ideologias.
Segunda coisa: vou falar de emoções. Diz um mestre chileno, o biólogo Humberto Maturana, que “lenguajear es emocionar” — a linguagem reconstitui emoções perdidas, gera outras, e, ao fazê-lo, cria e recria o nosso mundo. Portanto, Gravatá, ao permitir a conversa familiar e vicinal, mesmo que em simples fins de semana, presta um serviço de reconstrução emocional de laços familiares que podem nos dar força na volta ao trabalho da segunda-feira. Engraçado…por que isso parece não acontecer nas praias de veraneio? Estaremos criando um outro tipo (os “invernistas”) de viajantes de temporada e fim de semana em Pernambuco? A ver.
Só sei que as rodelinhas de milho de tia Almira me fizeram pensar nessas coisas. Quem quer um pedacinho? O primeiro é pra Jr.
Em tempo: vai aqui de lambuja uma sugestão pros “invernistas” que me lêem, sempre na linha de ajudar a recompor o espaço-emoção da família no friozinho de Gravatá. Alguém chama a turma pro cantinho mais legal da casa, DESLIGA a TV e bota um som mais suave (pede licença à meninada do som-axé). Depois, cada um pega uma folha de papel em branco, uma caneta, e faz o seguinte: desenha do seu jeito a planta-baixa (quarta, sala, terraço etc.) da casa da infância, e vai escrevendo/desenhando as lembrança nos lugares em que aconteceram. Aí depois cada um fala da experiência pros outros. Que tal? Garanto que não vão se arrepender de ter perdido a novela das oito.
Vou inaugurar os comentários… adorei compartilhar as “rodelas de milho de tia Almira”. A minha mãe costuma cortar o milho em rodelas regulares – iguias as de tia Almira com sabugo e tuddo – quando cozinha galinha. O prato fica bonito e a gente come a galinha que come o milho que a galinha come.
Li com avidez o texto e no final pensei que você iria propor a brincadeira de “animal/cor/cidade/pessoa…” Mas é isso. É bom voltar à infância nas lembranças, nos cheiros, nas cores. E a casa, na planta ou na planta do pé, será sempre o abrigo para essas lembranças, para emoções comungadas.
lis,
qualquer maneira de brincar de memória vale a pena — e desenhando é melhor ainda.
é só ter cuidado com o que o outro vai dizer depois (muito respeito) e não ter medo de escuro (todo mundo tem um sótão na casa de infância).
[]s
Cláudio,
Dependendo do número de comensais (sobrinhos, visitantes) as rodelas eram de até duas fileiras de milho só, mas tinham um gosto diferente do milho encontrado hoje o ano todo em Recife, Olinda, João Pessoa, Campina Grande ou Patos. Só comíamos milho assado e melancia, durante uma época do ano mas tinha um gosto muito melhor do que os de hoje, na cozinha do paiva ou da casa das tias em Patos, lembrando as férias em santa rita e viagens a cavalo para o paiva.
jr,
lembro, com a nitidez de fazer água na boca, o prazer de comer as rodelas de 2 fileiras…eram sem dúvida as MUITO melhores. mais ainda quando embaladas no papel celofane da saudade.
CM,
Pense uma duas coisas boas:
1/ re-encontrar vc. no tal mundo blogal;
2/ “sentir” que os sentimentos “empate’ com sua competência, pensando bem, acho que os sentimentos ganham.
Concordo com o gosto do milho, que assávamos na fogueira, na rua em Campo Grande, hoje faço fogueira no friozinho de… Igarassu, que é bom também, com os amigos e seus filhos.
Bom saber de voce!
Saudades.
AngelaN
Cláudio,
Êita coisa boa lembrarmos da nossa infância… Seu texto me fez viajar no tempo… sabores, cheiros, música … fogueiras, friozinho…
Ah, e sim: não ter medo do escuro! Todo mundo tem um sótão na casa de infância… ou um lugarzinho escuro no cantinho do jardim, ou embaixo de uma escadaria escura onde ninguém passa, ou até um guarda-roupa escuro. Muito boas essas recordações! Ótimo texto!
Um abraço!
angela, raquel:
eu não disse? lenguajear es emocionar…peguei vocês….que bom.
obrigado.
Oi Claudio,
Adorei teu texto…e colocaria uma palavra a mais, mas que faz tanta falta nos dias turbulentos da metrópole: intimidade.
Convivência e Intimidade, consigo, com os queridos, com o vento, com o silêncio.
Que bom que voltou!
Bjs.
cláudio,
painho vive falando que vai comprar uma casa em gravatá, estamos só esperando!
neste são joão tivemos uma experiência familiar fantástica lá em taperoá, uma das cidades origem da minha família meira. bom demais.
adorei o seu texto, deu vontade de correr pra perto da família.
um abraço, d.
oi elena,
isso mesmo…esse é o espírito da coisa no insight da diferença entre veranistas e invernistas…vou voltar ao tema, acho que é bom e faz bem às pessoas.
bjs
diana,
diga a painho que não pense muito não, faça como a gente: não é a casa dos sonhos, mas vamos mudando aos pouquinhos e vai ficando com o jeito dos marinhos [aliás, casa em inglês, housing, é gerúndio, quer dizer, nunca acaba…não é isso mesmo?].
e cabem os amigos também…apareçam quando quiserem.
[]s
Cláudio,
as vezes a gente se perde ou perde alguma coisa. A infância que fica longe, lá nas dobras da memória é a primeira, depois vem os amigos jovens, e muito cedo os já maduros. E tudo se resume a uma única atitude. Conversar e dividir as memórias para não perder o rumo e as lembranças.
Não conheci Tia Almira e as rodelas de milho, mas Etelvina, minha avó paterna dividia tudo, comigo, meus seis irmaõs e meus dois primos, inclusive o milho do Sâo João. E em rodelas, como a sua tia, que de tão sábia ficou na memória da alma e do gosto.
Que Bom encontrar você de novo.
Bj
oi margarida,
que bom que voce se serviu das rodelinhas de milho de tia almira…volte sempre.
bjs
Claudio,
Lendo seu texto me retornam as perguntas: quem lê mais escreve melhor? ou quem escreve bem é porque ler mais?
Dos 5 anos que passei no Porto Digital, coordenando a Biblioteca, ( período de Fabio Silva ( eterno D. Quixote) a Valério Velozo), recebi suas excelentes doações através de Ju Pepeu.
Ficava imaginando… “só um leitor proficiente tem livros tão interessantes e valiosos e tão generosamente nos doa”.
Quando, nessa gestão de Sabóia, resolveram “detonar” a Biblioteca, senti o fogo de Alexandria destruindo não só os livros, mas nossos iniciantes leitores da Favela do Rato ( hoje, Pilar). Nada justifica esse descaso com uma ação de responsabilidade social, até então instituída pelo Porto, em gestões anteriores.
Os livros, entre eles os seus, foram parar em um depósito, em outro depósito e enfim, às traças, ao mofo e goteiras…
Que fiz? militante da leitura que sou, contatei todas as bibliotequinhas de bairros, bibliotecas comunitárias, escolas sem salas de leitura, municípios sem bibliotecas e conclamei a todos para receber o acervo da extinta biblioteca.
Foi assim que consegui salvar as suas preciosas doações.
Parabéns pela singularidade do seu texto. Que um vento maroto da serra lhe traga outras histórias.
Graça Lins
graça,
que bom que você encaminhou os meus livros para novas paragens…viajo junto com eles, curioso pelo que podem despertar na imaginação de leitores que nem conheço nem sei se vou conhecer um dia. fico feliz.
mas não se preocupe com o que aconteceu no porto digital…entendo essas coisas, tudo tem seu tempo, e você deu sua contribuição valiosa.
abraço; apareça sempre por aqui.
Dr. Claudio,
Blog bom é blog comentado! Seu texto casa bem com o que tenho vivido.Após alguns anos, bem vividos, como advogado sectimiano estou trabalhando no interior da PB, especificamente no municipio de Pedra Lavrada, e isto me permite algumas vezes relembrar o milagre que minha bisavó fazia(em Palmares/PE) quando apanhava três ou quatro pitangas maduro-extemporâneas no quintal e conseguia transforma-las em um delicioso litro e meio de suco a ser repartido pela netada e bisnetada. Viva o pé de pitanga de vovó Maria que tal qual o milho de sua tia é propriedade imaterial de minha família!!!
elias,
bom revê-lo…
com a devida licença da sua família, vou incorporar as suas “pitangas maduro-extemporâneas” à minha memória afetiva deste agradável diálogo que me permitiu reencontrar tantos amigos (sim, post bom é post comentado!).
grande abraço
Texto maravilhoso Claudio, mesmo não conhecendo os seus, nem sendo íntimo seu, consigo sentir no texto um sentimento nobre e ou mesmo tempo singelo, um sentimento gostoso de ser sentido, um sentimento bem agreste pernambucano no fim de tarde.
Para brindarmos o seu excelente texto, deixo aqui um poema (de um livro já pronto mas ainda sem previsão de lançamento) com a mão estendida da amizade… paabéns pelo texto e por tão nobre sentimento…
INESTIMÁVEL VALIA
Se tudo na vida tem seu preço
Quanto vale matar uma grande saudade
Sem prazo de validade…
Sem meio, fim, nem começo?
oi bruno,
bom vê-lo por aqui de novo.
volte sempre, plantando poesia.
assim, quem sabe, o blog florece.
abraço amigo.
Caríssimo Claudio,
veja só! Boas lembranças fazem rodelas de milho assado deixarem madeleines com inveja. Ou pelo menos perderem a pose…
Sempre desconfiei que havia qualquer coisa dando sentido à tua competência profissional.
Parabéns pelo blog e pelos textos. Terás um leitor no Sul. Que, aliás, já tem um friozinho em mira no interior de Pernambuco. Depois te conto onde é, esperando um dia tomarmos um vinho por lá.
Grande e afetuoso abraço,
Renato.
Caríssimo Cláudio,
quem diria! Boas lembranças fazem rodelas de milho assado deixarem madeleines com inveja. Ou pelo menos perderem a pose!
Eu sempre desconfiei que havia algum talento dando sentido à tua competência profissional.
Parabéns pelo blog e pelos textos. Terás um leitor no Sul. Que, aliás, já tem em mira um certo friozinho no interior de Pernambuco. Um dia te conto onde é, na esperança de, quem sabe, tomarmos um vinho por lá.
Grande e afetuoso abraço,
Renato.
oi renato,
caroços de milho e madeleines…hmmm…vou testar no friozinho de gravatá….rsrsrsr
bom recebê-lo por aqui, amigo…e vamos sim tomar um vinhozinho quando você vier. o frio não vai ser lá essas coisas que vocês têm por aí no pampa mas dá pro gasto e embala muito bem a boa conversa.
grande abraço.
Cláudio,amigo :
você sabe que eu tenho essa mesma relação afetiva com espaços. ao contrário de proust, eu ndo em busca de espaços perdidos, com essa conotação de afeto, de percepção de que ali a gente viveu algo muito importante. Acontece muito nas minhas separações conjugais, mas também em coisas como : o fechamento do Xinxim da Bahia, no Jardim Atlântico. O Elson, desgostoso com a guerra entre a amante e a filha, voltou pra Bahia, Nunca mais soube dele. Era o dono. Ali,nos fins de semana, eu, meus filhos (todos), a ex-mulher, ou somente eu e ela, ou somente eu e meu filho Pedro Ivo, que recebeu no Xinxim um telefonema de qu etinha passado no concurso para Procurador Federal. Lá tinha caracóis, cds pendurados, música de fundo da boa, sem nada de axé, e um clima descontraído. Todo o bairro ia lá, muitas famílias de outros bairros, e uma comida deliciosa – vatapá, acarajé, bobô de camarão e,é claro, o xinxim de galinha.
Tudo supervisionado pelo danado do baiano Elson. Voltei lá um dia em busca de lgum vestígio do xinxim. No lugar dele, tem uma casa particular, que é uma verdadeira fortaleza. as fotos dos clientes sempre estavam lá que anos adiante, ele voltaria já grisalho pra ver o xinxim, e seus dois garçons envelhecidos. Não eram profissionais.E o tempp ´para servir era baiano.
fiz até poema e distribui com a filharada.eu chamo isso de espaço-afeto. como nossa cidade vem perdendo isso por causa da violência e dos grandes prédios. de qualkquer janela onde moro, ou nos apartamentos dos filhos, é o mesmo cenário.pode ser recife,salvador, são paulo….e toido mundo apressado, sem ter olhos e sentimntos para aquele toque que aperta o coraçlão da gente. é difícil,amigo….
não conhecia o seu blog. fiquei tanto tempo desconectdo. já adicionei ele a meus favoritos.
amigo roberto,
que bom que você veio me visitar – a casa é sua.
espaço-AFETO? ISSO mesmo! e agora você descobriu um segredo bem guardado que tenho comigo: por que moro em olinda antiga desde os anos 70.
porque aqui se guarda na memória visual, pela permanência da TEXTURA do espaço, o que vamos vivendo ao longo dos anos – sai carnaval, entra carnaval, a cidade se entregando ao mundo e sempre de volta pros seus moradores.
está certo o poeta Carlos Penna filho: não é aqui que eu moro, é [d]aqui que eu vejo…
abraço,
cm
Não sei como entrei nesse blog… acho q alguém retwittou e eu cliquei… só pode! Mas a providência permitiu, pra eu começar meu dia já desfrutando de algo que tanto gosto… Fazer memória de lembraças boas e voltar, como sempre faço, aos valores de minha terra!
Quem é vc Cláudio Marinho? Rsrs
Q texto bom… parabéns… dá gosto da gente adentrar na sua narração! Eu sou pernambucana tbm, embora do interior, mais precisamente do Alto Sertão do Pajeú, uma cidadezinha chamada: Brejinho! Visinha a São José do Egito, a região dos grandes poetas de nosso estado, minha vó era de lá, Leite (da gema). Já morei em Patos/PB tbm, família do avô materno vem da Paraíba – Meira de Vasconcelos.
Tbm amo Gravatá… Obrigada pelo texto tão gostoso de se ler… Podemos partilhar mais essas experiências enriquecedoras da nossa história… da nossa cultura!
Sou jornalista, mas hj graças a Deus, faço parte da Comunidade Canção Nova e nos últimos anos estou no interior de SP.
Estará nos meus favoritos, voltarei outras vezes p conferir novos posts..
twitter.com/veronicasuenia
http://www.cancaonova.com
Oi, Claudio!
Vim checar o site que você me deu ontem, e quando pensei que ia me deparar com algo institucional, me aparece um blog maravilhoso, cujo primeiro post que leio fala logo de lembranças tão vivas e pertinentes em qualquer um de nos com, no mínimo, alguns muitos “porcentos” de sangue sertanejo.
Aqui de tão longe, lembrei da minha família, das conversas de tamborete na cozinha com cheiro de galinha à cabidela e farofa. Lembrei de painho, que assim como você, sempre tem algo interessante e bonito pra falar dessa vida simples, mas muito feliz, que se tem no interior.
Obrigada por essas lembranças! Sao como travesseiro de plumas pra um coração que vive em terras distantes, mas que não esquece de onde veio.
Um abraço grande!!!
Themis
Genial o post e a sugestão do ‘em tempo’.
Como já faço a primeira parte – ir para o melhor lugar da casa, desligar a tv, colocar um som mais suave- vou adotar a segunda parte.
Forte abraço
Paulo Lopes